ESCOMBROS SOCIAIS
ESCOMBROS SOCIAIS
Na madrugada da última terça-feira, em São Paulo, o edifício Wilton Paes de Almeida, um dos marcos arquitetônicos da cidade, desabou após pegar fogo. Nele, residiam precariamente cerca de 150 famílias que, sem opções de moradia na metrópole, invadiram o espaço que antes foi da iniciativa privada e depois passou as mãos do poder público.
Ao lado da construção imponente, que data da década de 1960, está a Igreja Evangélica Luterana, outro marco da arquitetura paulistana, em estilo neogótico, construída no início do século XX, que também desabou atingida pelos destroços.
Quando vi a tragédia pela televisão, percebi, de pronto, algo insólito: o prédio caiu, justamente, em cima da Igreja, fato que, pelas leis da matemática e da física é extremamente plausível, mas minha questão aqui é outra: tratar do simbolismo extremamente forte que há por trás da desgraça anunciada.
O antigo edifício envidraçado, de beleza ímpar, era nos dias atuais o símbolo do descaso governamental com a vida humana, um depósito de pessoas, uma favela vertical onde se abrigavam os invisíveis deste tempo, gente vitimada pela injustiça, pelo abandono, pela falta de oportunidade, pelo expurgo social moderno. O lugar era palco de uma calamidade aguardada, com instalações elétricas e hidráulica depredadas, caos nos corredores e escadas, inexistência de infraestrutura para combate a incêndios, ou seja, um lixão a céu coberto com centenas de pessoas tentando sobreviver ao drama de existir nesse País.
A igreja, por sua vez, estava ali ao lado e foi vitimada pelos escombros do desabamento. Em entrevista ao Portal de Notícias do UOL, o pastor Frederico Carlos afirmou que, depois da tragédia, apenas o altar e a torre da paróquia continuavam de pé, todo o resto havia sido destruído. Também chegou ao conhecimento da imprensa que, recentemente, a igreja arrecadou cerca de 1,3 milhões de reais – 80% do total – e os investiu na restauração das cobertas, madeiramento, vitrais e outros elementos internos da construção. Os 20% restantes vieram de programas do governo de preservação a cultura. Para a fase externa, é provável que outro montante semelhante precisasse ser investido, mas agora tudo terá de ser repensado.
Os simbolismos que cercam o acontecimento, para mim, são explícitos, estamos diante de uma metáfora social e de um arquétipo religioso. De fato, a igreja restaurada era um monumento a beleza, mas estava, justamente ao lado, de um monumento a pobreza, um local onde havia gente agonizando, lutando para suportar uma realidade degradante. A verdade, que é dura, é que a igreja não foi chamada para cuidar de pedras, mas de pessoas, o templo a ser restaurado não é uma construção de tijolo e cal, mas de carne e sangue.
O cristianismo deste tempo se tornou uma engrenagem enferrujada, a igreja católica tem mais templos do que pode cuidar, a maioria está desabando. A igreja evangélica, por outro lado, não fica atrás, investe em construções faraônicas, algumas das quais realizadas para lavar dinheiro. Jesus olhou para o Templo de Jerusalém, uma das maravilhas da antiguidade, e disse: “Não ficará pedra sobre pedra!”. Ele não se preocupava com espaços sagrados, pois sabia que a única geografia que Deus reconhece é a daquilo que pode ser santificado no coração.
Pesquisando, tomei conhecimento que a igreja Luterana que desabou realizava trabalhos sociais relevantes. É um alento, não tenha dúvidas… Mas os milhões investidos na restauração teriam melhor destino se alocados para transformar a realidade humilhante daqueles que estavam ao lado, com fome e frio, sem justiça, sem segurança, a mercê da sorte. Se o governo quer restaurar prédios históricos, que o faça, é legítimo, a igreja, todavia, existe para salvar pessoas, para denunciar abusos, para se solidarizar com os que sofrem, para viabilizar a transformação da sociedade, prédios não nos interessam, somos construtores de mentes, moldamos consciências com os valores do Reino de Deus.
É simbólico que o prédio tenha desabado sobre o templo, pois quando há inoperância da igreja, a sociedade apodrece e os escombros caem em cima dela mesma, somos, irremediavelmente, inescusáveis, pois não é possível esquecer o que Jesus afirmou: “Eu tive fome, e não me destes de comer, estava nu, e não me vestistes”.
Esse artigo não é uma condenação a ninguém, muito menos a Igreja Luterana, que sofre pelo que aconteceu. Ele é, antes de tudo, um chamado a reflexão sobre nossas responsabilidades, sobre nosso chamado para nos envolvermos com o que está ao nosso entorno, é um desafio para que analisemos as prioridades que estabelecemos, qual é, de verdade, o cerne da mensagem que pregamos, pois de todas estas coisas daremos conta no dia do Juízo.
Quem passar hoje pelo lugar da tragédia, vê ao lado de um monte de entulhos a torre e o altar da antiga construção religiosa. É, mais uma vez, um sinal: a torre atesta que ali havia uma igreja, e o altar aponta para o fato de que, só se serve a Deus servindo as pessoas. O verdadeiro altar, conforme o Evangelho, é a vida do meu semelhante, altares de madeira, revestidos de veludo, são maravilhosos para apreciarmos, mas são incapazes de abrigar alguém do frio ou de saciar a fome de quem não tem o que comer…
(Carlos Moreira – Charlito )